terça-feira, 11 de março de 2008

O sexo é um lugar (muito) estranho

Bruno Horta assistiu à estreia de uma peça sobre sexo, poder e delinquência.



Três rapazes delinquentes conversam e jogam às cartas, sentados em pobres camas de ferro. Dão-se mal uns com os outros, são rebeldes e revoltados. “O meu cu é mais bonito do que a tua cara”, diz um. “Aquele tem a mania que é o galo da capoeira”, diz outro. Estão num reformatório, mas as regras são iguais às de uma prisão de outros tempos. Há castigos físicos, uma cela solitária, guardas violentos. E muito sexo escondido.

É este o cenário de Os Olhos do Mundo e a Fortuna, peça do canadiano John Herbert (1926-2001), estreada a semana passada no Espaço Karnart – onde peças e performances de temática gay são bastante habituais.

Apresentada em duas partes, com intervalo pelo meio, a peça foi traduzida, adaptada e encenada por José Henrique Neto, de 52 anos, actor desde 1977 e fundador do grupo de teatro 3-Sete-3, que a leva a cena.

´Dos três rapazes, Queenie (João Vicente) é o único gay assumido – os outros são ambíguos. Adora exibir-se, é um desbocado. Arranja as sobrancelhas, discute com toda a gente, põe as plumas, rebola-se, canta e fala muito. Das zonas de engate, onde atacava antes de ser mandado para o reformatório. De prostitutos de rua que conheceu e que odeia. E da forma como, em troca de favores sexuais, consegue ser bem tratado pelos guardas. “Cheguei a primeira-dama alçando a perna esquerda e a direita.”

Apesar disso, a personagem principal não é ele, nem os dois companheiros de cela: Rocky (José Redondo) e Mona Lisa (Luís Lobão). É um novato que se lhes junta: Smitty (Tomás Alves). “O tipo de rapaz simples ‘às direitas’ que geralmente inspira simpatia à primeira vista”, lê-se na folha de sala. Ingénuo, no princípio, passará, em três tempos, a dominar os outros.

Para se perceber bem a peça é preciso lembrar que foi escrita há 41 anos, em 1967, quando o movimento de libertação homossexual, tal como o conhecemos, ainda não existia. Ou seja, é anterior ao episódio de Stonewall, em Nova Iorque, em Junho de 1969, quando um grupo de noctívagos gays se revoltou contra a violência da polícia.

Segundo a Encyclopedia of Canadian Theatre (online, gerida pela Universidade de Athabasca, Canadá), trata-se da “primeira peça a apresentar de forma chocante o tratamento que a sociedade dispensava aos gays e as condições desumanas das prisões”. À data, os actos homossexuais no Canadá eram punidos com pena de prisão até 14 anos.

Apesar de já ter sido traduzida, segundo aquela enciclopédia, para 40 idiomas e apresentada em mais de cem países, é a primeira vez que a peça chega a Portugal.

José Henrique Neto nota que “seria redutor encarar esta obra como peça gay”. A homossexualidade, diz, “é necessariamente preponderante nas prisões, mas aí, como em todo lado, o sexo só raramente está ligado a opções reais e ainda mais raramente ao amor”. O importante, diz, “é que as pessoas olhem para a obra como uma metáfora dos jogos de sexo e de poder que existem em todo o lado”.

Os Olhos do Mundo e a Fortuna, de John Herbert. Qua a Seg, 22.00. Espaço Karnart, R da Escola de Medicina Veterinária, 21.
terça-feira, 4 de Março de 2008
Revista Time Out

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